As primeiras medidas do governo Lula em relação às políticas de saúde para mulheres indicam que a nova gestão vê as articulações com estados e municípios como prioritárias e pretende ser fiel aos princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS), como universalidade, integralidade e equidade.
Colocando em prática uma sugestão que veio da equipe de transição, o Ministério da Saúde revogou a portaria que instituiu a Rede de Atenção Materna e Infantil (Rami) – definida na gestão de Jair Bolsonaro (PL) – e trouxe de volta a Rede Cegonha, inaugurada em 2011 para promover e financiar ações de atendimento humanizado e multidisciplinar da gravidez aos dois anos de idade do bebê.
Quando decidiu trocar o projeto pela Rami, no primeiro semestre do ano passado, a gestão anterior foi duramente criticada por diversas entidades do setor da saúde. A falta de diálogo com os entes federativos para definição da ação estava entre as principais preocupações.
Na época, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) afirmaram que a falta de um pacto real feriu princípios do SUS. Já o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa), pontuaram que a Rami dava ênfase somente ao trabalho de obstetras e deixava de lado toda uma rede multidisciplinar já consolidada.
Giordana Braga, ginecologista e obstetra, médica de família e membro da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, explica que a Rede Cegonha representa uma forma inclusiva de atenção à saúde.
“Ela atende com uma atenção prioritariamente multiprofissional. Você não tem só atenção à saúde voltada para o médico, você tem uma atenção à saúde que tem médicos, enfermeiros, educadores físicos, técnicos de enfermagem, agentes de saúde, todos juntos em programas financiados pela federação e, de acordo com as prioridades de cada estado, as particularidades de cada estado”.
No sentido contrário, a Rami “parte de uma metodologia excludente”, tanto para profissionais da saúde quanto para pacientes, principalmente famílias que não seguem o padrão heteronormativo convencional.
“Outro retrocesso é que essa portaria trocava o termo planejamento reprodutivo para o termo planejamento familiar. Esse termo implica em um significado de família (formada) por pai, mãe e criança. Exclui a mãe que está sozinha, a adolescente que engravida, casais homoafetivos e os demais casais população LGBTQIA+. Já fere princípios dos direitos reprodutivos e sexuais que são garantidos pela nossa Constituição. A revogação da Rami e a volta da rede Cegonha é a volta aos princípios da nossa Constituição e aos princípios do SUS”, afirma Giordana Braga.
Aborto legal
Nas primeiras semanas de governo, o Ministério da Saúde anunciou também a revogação da portaria que obrigava profissionais da Saúde a avisarem a polícia antes de procedimentos para interromper gestações decorrentes de estupros, independentemente da vontade da vítima. A decisão também previa a entrega de material biológico decorrente do estupro para as autoridades sem o consentimento das pacientes.
O aborto é garantido por lei para mulheres que sofreram abuso sexual desde a década de 1940 no Brasil. A justificativa do governo de Jair Bolsonaro para a determinação dizia que o procedimento visava aumentar as chances de punição dos agressores.
Na prática, no entanto, entidades denunciaram que a medida dificultava o acesso à interrupção da gravidez e marginalizava mulheres que dependem do SUS para atendimento.
Helena Paro, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas) do Hospital de Clínicas da cidade (HC-UFU) e também membro da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, afirma que a decisão do governo anterior empurrava mulheres para abortos ilegais e violava o princípio do sigilo médico.
“Essas mulheres não vão deixar de interromper a gravidez, mas vão deixar de procurar serviços de saúde qualificados e que podem prover o cuidado seguro e legal e ir para o aborto ilegal, clandestino. É uma tentativa de apagar os números, que já são muito pequenos em relação ao que estima-se existir de gravidezes em decorrência de violência no nosso país.”
A professora fala também sobre a importância da revogação da uma cartilha, lançada durante o governo Bolsonaro, que desestimulava a interrupção da gravidez mesmo nos casos garantidos por lei e minimizava riscos de manutenção da gestação para adolescentes.
“Era uma outra tentativa mesmo de agravar algo que já é muito difícil no nosso país, que é essas meninas acessarem o direito à saúde, o direito a ao aborto, que é permitido no nosso país desde 1940. Qual é o reflexo disso nas unidades de saúde, nos serviços de saúde? É um documento ideológico, não é técnico, não é pautado nas evidências científicas. Além de afastar as meninas dos serviços, é uma desinformação e uma insegurança jurídica para profissionais de saúde, que já são escassos.”
Entre idas e vindas ao longo da gestão conservadora, o documento chegou a ser publicado com mentiras, como um trecho que negava a existência do aborto legal no Brasil e dizia que todo procedimento dessa natureza configurava crime em território nacional.
O início do governo Lula também foi marcado pela saída do país da Declaração de Consenso de Genebra, uma aliança internacional que une países contrários ao aborto.
Em nota conjunta do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Saúde e do Ministério das Mulheres e do Ministério dos Direitos Humanos o documento foi condenado por limitar direitos sexuais e reprodutivos e o conceito de família e por comprometer a aplicação da lei brasileira.
“O governo reitera o firme compromisso de promover a garantia efetiva e abrangente da saúde da mulher, em linha com o que dispõem a legislação nacional e as políticas sanitárias em vigor sobre essa temática, bem como o pleno respeito às diferentes configurações familiares”, afirmava o comunicado.
Foto: Arquivo / Agência Brasília
fonte:Brasil de fato